sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Depois do último

É que na verdade a minha rua anda meio vazia. Sem o desgaste do seu sapato, as pedras chutadas pelo seus pé, nem os latidos do cachorro quando você tocava a campainha. Tô sem a sua chave abrindo a porta de casa, sem a sua camiseta preta pendurada no meu cabide, sem os lençóis, as colchas, o cafuné domingo de manhã. A minha casa anda meio vazia. Sem teu chinelo encostado na parede do banheiro, sua bermuda no cesto de lavar, a caixinha do seu óculos na beirada da cama. Sem teu perfume dentro do armário, sua escova de dente na gaveta do banheiro e seu sorrisão me desejando boa noite. Sem teu livro na cabeceira da cama, sua toalha pendurada no box, o espelho do corredor sem você no reflexo. Meu quarto anda meio vazio, sem as migalhas de pão na fronha limpinha, sua mão alisando o meu cobertor, sua jaqueta pendurada na porta do guarda-roupa, a foto da sua família do lado esquerdo, perto da janela. A minha cama anda meio vazia, meio gelada, a mancha de sorvete lavada, o cheiro de orquídeas do seu travesseiro na máquina de lavar, sem o seu tênis preto fazendo companhia pro meu tênis branco atrás da porta do quarto, a sua almofada no sofá de dois lugares, sem suas "revista inteligentes" na mesinha de centro. A minha vida anda meio vazia, sem os teus conselhos no meio da madrugada, suas mãos contornando a minha cabeça no seu peito quando eu tava errada. É que na verdade tudo o que tava cheio, tá muito cheio ainda, do vazio que você faz dentro de mim.

Marcella Casari

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segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O último texto

Eu tô contando os segundos pra ver quais serão as últimas palavras que navegarão no meu pensamento. Se eu terei que me esforçar pra esvaziar minha mente, ou se minhas ideias fluirão livremente, daqui de dentro pra fora, nessas linhas retas, sem a mínima intenção da minha caligrafia. Estou aqui, para despedir-me das palavras. Não sei por quanto tempo deixarei de escrever, de esavizar-me pra que me leaim. Não sei. Eu. Realmente. Não sei. Mas nada melhor que despedir-me aqui mesmo, pra que saibam. Se quiserem mesmo conhecer a verdadeira Marcella essa está descrita nesses textinhos abaixo, apenas para curiosidade alheia e satisfação própria. Eu tenho saudades demais para que caiba toda aqui, nesse quadriculado. Não compartilharei mais, está aqui tudo o que podia.
Fiquem na paz do Senhor,

Abraços Marcella Casari

Diálogo

- Me diz adeus.
- Quê?
- Eu to pedindo pra você me dizer A D E U S!
(...)
- Eu não to terminando com você...
- Você ta me deixando, sozinha... Saco, e você nem liga. Semana que vem? Ta ai, logo, logo, e eu nem vou mais te ver...
Ahhh, eu não quero mais te ver.
- Quer sim.
- Odeio a sua prepotência. Odeio, odeio, odeio. Porque você sempre acha que tem razão, você ta sempre, sempre certo. Isso na sua cabeça. Eu odeio essa sua cabeça que só ri das coisas que eu falo. E você não vai ta perto de mim quando eu precisar ouvir que você tem razão, eu não vou ter você do meu lado quando eu estiver em dúvida, você não vai mais me dar bronca. Saco, eu não vou poder nem brigar com você quando você estiver certo...
- Eu posso ir embora agora, semana que vem, ano que vem, mas ei, olha pra mim, eu to do seu lado, e sabe por quê? Han? E você sabe por quê? Porque eu te amo Luísa, sua boba.

Marcella Casari

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sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Um Dia

Um dia eu vou me comparar estar nos teus braços e alojada numa quitinete de frente pra avenida principal. Um dia eu trocarei de roupa e olharei pela janela as pessoas que nem vão dar pra minha presença minúscula. Um dia eu vou esfregar o pano no chão da sala e ali ainda terá o frasco do seu perfume quebrado. Um dia eu vou estar assistindo a tevê, e você vai chegar sem dizer nada, vai tirar a camisa, sentar-se-a ao meu lado e dormirá no meu ombro. Um dia eu vou estar escovando os dentes e você vai estar do meu lado, na frente do espelho e me fazer uma careta de bom dia. Um dia eu vou matar uma barata sozinha. Um dia eu vou te acordar no meio da noite pra você pegar o rato embaixo do sofá. Um dia eu trocarei os lençóis. Um dia você me fará cafuné e elogiará a minha sandália nova. Um dia eu vou te acordar. Um dia você vai me ver dormir. Um dia, ainda será de manhã, eu catarei a tua roupa suja e porei pra lavar, eu guardarei as tuas camisas passadas, eu farei teu café e te darei um beijo na boca. Um dia eu varrerei a sala, varrerei teus cabelos, teus cílios, tua sombra. Um dia caminharemos de mãos dadas, atravessaremos a rua, pararemos o trânsito e nem daremos bola. Um dia desligará a tevê, me levará pra cama, puxará os lençóis e me cobrirá. Um dia eu vou esquecer a chave de casa.

Um dia eu vou estar vestindo a roupa que estava amassada de dentro da gaveta, alisando-a no meu corpo, com as minhas mãos mesmo, enquanto você vai estar limpando a areia dos gatos pra gente poder sair e almoçar num restaurante caseiro na esquina da praça. Um dia você vai lamber a minha colher do sorvete. Um dia eu vou estar recolhendo a roupa do varal, e estará chovendo e você continuará deitado na cama, aproveitando os restos no nosso café da manhã. Um dia na praça um fotógrafo já velhinho vai querer tirar um foto nossa, ela vai estar na estante, ao lado da agenda telefônica. Um dia, quando você perder a hora pro trabalho, gritará comigo e eu estarei arrumando a cama, enquanto você escovará os dentes apressado, der-te-ei um beijo e me amará de novo, mesmo a culpa sendo sua. Um dia chegarei tarde em casa, trocarei de roupa e você estará deitado na cama, lendo um livro chato, só pra que eu ainda fique acordada, te vendo, o tempo todo que eu não te vi(...)



Marcella Casari

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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Nós bem fortes

Quero somente a tua voz cansada, dormindo sobre o meu ouvido. Somente a tua mão dura, pesada, posta sobre a minha mão, arrancando dela, suspiro atrás de suspiro, procurando acalmar minh'alma já posta de lado. E o ar que sair pelas tuas narinas, eu sugarei com a boca, pra dentro de mim, e desenhará aqui, dentro do meu organismo, o caminho mais próspero pra tua felicidade. Com a mesma boca cobrirei teus andares e subterrâneos, aproximando, e afastando os meus centímetros dos teus. Regozijaremos. Eternos enquanto durar, um pedaço teu jogado na minha parte inteira, montar-te-ei das beiradas até o meio, imaginação ou realidade. Fantasia. Quero somente o teu fardo leve, teus problemas pesados, tuas angústias amenas, teu ar, teu chão, tua pedra de tropeço, teu grito, tua dor, tua voz, tua alma, tua e minha.

Quero somente se não estiver por perto. Somente se estiver longe, cansado, fatigado, com ou sem saudades, com cem vontades, sem desejos, enquanto puder te imaginar. Se ainda teus olhos formigarem dentro dos meus, e se cruzarem, caminharem. De mãos atadas, dadas, entrelaçadas, suadas e cheias de você, de mim, de nós. Cobrirei tuas lacunas, e tirarei de dentro os ócios, os vícios e machucados. Curar-te-ei os sonhos, anseios, medos, pés calejados e ombros cansados. Quero somente se lembrar meu nome, se souber de mim o que não sabem, não veem, não conhecem, somente se me esquecer, se me deixar jogada pra fora, largada, esculachada, amargurada, sozinha. Sozinha de você, com você, sem você, só você. Caminharei os desertos das tuas mãos, as rugas que se formarem na tua face, a pele escorrendo pelo resto do corpo, o desmazelo, a falta de cuidado, o calor emanando do corpo, o cheiro, o ar. Tua saudade construindo mais buracos. Saudade só constrói buracos. E você só constrói saudades.

Marcella Casari

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terça-feira, 15 de setembro de 2009

Lâmpada

Luísa tinha acabado de ler a carta escrita a mão de Luis Fernandes, quando enxugou a última lágrima que poderia escorrer aquela semana. Dobrou-a cuidadosamente e colocou de volta na última gaveta do armário. Ali tinha muito mais do que papéis. O sorriso dela amargurou-se mais uma vez, flagelando o resto do corpo com as metades da sua alegria. Tinha dentro das lágrimas o sabor azedo de sentir-se tão envergonhada, como poderia estar se lamentando se nesse mesmo caminho as pedras foram postas de lado? Nenhum tropeço para machucar-lhe. Luísa, ajeitou bem o vestido, para levantar-se do chão, cambaleou, fechou os olhos e não permitiu nenhuma demonstração de sentimento, nem a alegria escondida, nem as lágrimas. Encostou-se no armário e deixou escorrer no canto da boca um sorriso, mordiscou o mesmo canto do lábio e sentiu-se plena. Não tinha nada nem ninguém que a afastasse de si mesmo mais do que Luis Fernandes, e aquele homem roubava-lhe todas as noites a luz dos seus olhos, roubava-lhe e depois devolvia, toda manchada, fraca, quase apagando. Ah, quem dera se levasse consigo apenas uma lâmpada e não a luz inteira.

Marcella Casari

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segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Uma História

Eu tinha uma história pra contar, mas me esqueci. Tinha planos pra hoje a noite, mas desmarquei. Esqueci-me por falta de coragem, considerei demais meu medo e a minha vergonha, e pus de lado esse pensamento. Nessa história que nem me lembro mais, eu tinha alguma coisa pra contar, mais um segredo pra revelar, uma alegria que perdi pelo caminho, meu sorriso que se desgastou, manchado de uma injúria sem limites; nessa história eu contaria pra você como foi a minha semana, e como estão sendo meus planos pra daqui uns meses, eu comentaria meus sonhos frustrados, minhas lágrimas imaginárias, meus sorrisos falsos e como sou dissimulada. Nessa história eu te diria como anda a minha vida, a dor que sinto, a maneira como eu lido com tudo isso; eu te diria que tá tudo bem, porque eu sei que assim você estaria sorrindo pra quando eu voltar pros teus braços. Eu tinha uma história pra contar. E com ela eu resumiria minha saga, minhas chagas e inxaços pela pele. Revelar-te-ia, o último sorriso que dei semana passada, e o suspiro que dei segundos atrás, com essa história, você saberia metade das minhas verdades, e o inteiro das minhas mentiras mais sujas, imundas e totalmente convidativas. Quem sabe você se enojasse de mim, quem sabe me amasse um segundo a mais.

Marcella Casari

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domingo, 13 de setembro de 2009

Isso sim é uma metáfora

Deixei que me conduzisse muito bem. Com as minhas mãos apoidadas nas suas, só pra que eu ainda seguisse em linha reta. Deixei depois que soltasse delas, pra que o mesmo caminho fosse alcançado da maneira certa.

Marcella Casari

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sábado, 12 de setembro de 2009

É uma metáfora

Eu conheço essa cidade com a palma da minha mão. Só não me peça pra andar mais rápido. Eu vou pelos caminhos mais longos. Apreciando a paisagem. Tocando fundo n’alma das minhas memórias. Não me peça pra ficar calado quando passarmos em frente à casa da minha infância. Faço questão de te revelar os meus segredos escondidos embaixo do tapete. Minhas travessuras e a coleção de cartão-postal. Não me peça pra não te mostrar a cor da roupa da minha cama, nem o travesseiro com cheiro de orquídeas, meu maior orgulho era aquele cheiro quando eu sonhava com você. Não venha me privar de te mostrar a folha rasgada em frente àquela porta, nela tinha a sua letra, naquela maldita carta de quando pensou que fosse viver sem mim. Não faz tanto tempo assim. Eu ainda lembro do gosto da fruta do jardim, da sua mão toda melada de manga, e o seu sorriso sarcástico quando acusei estar suja a sua boca. Não me peça pra pegar um atalho, quando eu sei que no caminho mais longo eu posso ouvir mais a tua voz balbuciando coisinhas que agora eu não sei nem mais o que significa. Eu to te vendo, você ta aqui, e só isso importa.

Não me peça pra falar mais baixo, nem pra largar a sua mão.
Não me peça para andar pela calçada já que no meio da rua eu desenhei nossos nomes com carvão, eu sei que não tem mais nada, mas só de imaginar a cor escura do carvão grudada nos meus dedos já vale a pena não saber exatamente onde escrevi. Você sorriu quando te contei dessa façanha, veio e me deu um beijo no rosto, tentei te fazer rir, mas você toda escrupulosa revelou-me não sentir cócegas, isso até o dia em que pus a mão no lugar certo. Não larga da minha mão, eu sei por onde guiar meus pés, mas minhas mãos dentro dos bolsos não cabem mais, deixa se encaixarem nas suas, e o suor que brotar dali a gente ignora, deixa que o meu corpo faça sombra no teu. Não venha me pedir pra não repetir aquela história, eu me lembro muito bem dos detalhes que você deixou escapar com o vento, eu tinha o seu corpo escondido no meu, meus braços adornavam suas costas e você fazia carinho na minha cabeça, como se eu fosse uma criança pedindo carinho, e eu era, eu estava ali suplicando e você tinha toda atenção pra mim.
Eu conheço essa cidade com a palma das minhas mãos, mas por você eu me perco, me esquivo das ruas principais, aventuro-me por ruas sem saída e vou pela sombra.
Só não me peça para ir por outro caminho.

Marcella Casari

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sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Sem Mais

Confesso que te queria por perto pra alisar meus cabelos, passar seus dedos pelos meus fios, os bastante, pra que eu pudesse brigar com você aqui perto de mim. Minha cabeça encostada no seu colo, pra que eu pudesse sentir o seu cheiro que fica na minha roupa. E você então pegaria a minha mão e beijaria, fecharia os olhos, levantar-me-ia dali, pra que meu rosto chegasse bem próximo do seu, e o seu oxigênio percorresse minha face, um ar quente, espesso, só pra que eu também fechasse os olhos...

Marcella Casari

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A folha verde

Eu tinha guardado dentro do bolso aquele pedacinho de folha que me deu semana passada, eu tinha dobrado e guardado no bolso da calça, e tá aqui até agora. Lembra? É aquela folha verde, nossa, verde, e tudo o que vem de você fica mais lindo ainda quando é... verde. E olha que a calça já foi lavada, mais ela ainda tem o cheirinho do seu perfume que eu não sei o nome, acho que nunca te perguntei né? De onde vem esse seu cheiro. Eu não podia deixar de considerar a sua mão colocando a folha dentro do meu bolso, tentando se encaixar naquele espaço minúsculo, e só couberam dois dedos seus, e ainda foi difícil de ajeitar a folha ali, eu deixei porque era a sua mão, tinha o seu braço e o seu corpo comigo. Mas agora eu estou tirando essa folha de dentro do bolso da calça, eu vou guardar comigo, numa caixinha que eu tenho dentro do guarda-roupa. É coisa de menina esse negócio de ficar guardando as coisas. Mas essa folha tem o seu gosto nela, esse gosto do seu cheirinho, o gosto da sua mão, do seu braço, de você comigo.

Marcella Casari

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Frio

Aquela brisa espalhava meus cabelos, bagunçava todo o arranjo que eu tinha feito pra ficar mais bonita. Eu tapava os olhos pra não entrar poeira, então você vinha com suas mãos gigantes, me proteger do frio que começava queimando e terminava quando eu já estava dentro da sua blusa de frio, dividindo o seu calor. Eu cabia exatamente encostada no seu peito, ouvindo o seu coração bater, sua respiração ofegante, o ar quente que saia da sua boca e me atravessava as orelhas, chegando a nuca me causando um arrepio, mais um arrepio naquele frio em que você me protegia. Seus dedos encostavam-se à minha boca, porque você sabe que sinto muito frio ali, eu te mordia bem de leve, e o seu ai saia fraco, o vento te arrancava a voz mais linda do mundo, e punha no lugar uma rouquidão que me deixava louca, você tava tão perto, e eu cabia exatamente com você. Você me balançava de lá pra cá, como se eu fosse uma criança mimada, precisando de carinho, e eu precisava, sim, eu precisava pôr minhas mãos nos teus bolsos, procurar ali alguma coisa, só pra poder percorrer seu corpo mais de perto, mais de perto, e você ria quando a minha mão não sabia onde estava, afastava-se e eu ria pra você, eu ria e você ria, a gente concordava com tudo aquilo e sabia que nem se nascesse o sol naquela noite, nem o sol me aqueceria mais que passar o frio dentro da sua blusa, dividindo com o seu corpo o mesmo calor que aquecia o meu. E me beijava a testa, em sinal de amor, e tinha ainda o amor, só pra enfatizar.

Marcella Casari

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Carmem

Ele tinha nas mangas umas atitudes difíceis de se aceitar. Um sorrisinho sarcástico que escondia melancolia e desejo. Tinha dentro dos globos oculares uns feitiços animalescos, que fazia jazer de amor qualquer mulher que lhe penetrasse bem fundo os olhos, algumas delas, pobres coitadas, iludidas e sofridas. Nenhuma lhe arrancara do rosto essa convicção de homem dos sonhos, ele carregava o leve fardo de ser o homem perfeito que arrancava de qualquer mulher a pureza que escondia dentro da roupa, ou no próprio olhar, ele dominava sem direito, e isso incomodava muito. Não era o cabelo despenteado, nem as roupas mal passadas por sua mãe, nem se quer a barba que arrancava daquelas mulheres um suspiro atrás do outro, como se aquela dor fosse o auge do prazer delas, ah, pobres coitadas. Não havia nada naquele homem que não revirasse suas cabeças, não tinha sequer um pedaço de seu corpo que não lhes arrepiasse a alma por inteiro, até seus pés, seus pelos, seus ombros, sua língua.

Carmem se encantara por Armando, estava evidente, e negava. Eram jovens e o que o destino não poderia estar reservando a eles? Mas Carmem tinha medo de se perder, deixar-se levar por aquelas mãos quentes não estava necessariamente em seus planos, tentou, mas não evitou olhar de lado assim que Armando sentou-se ao seu lado na mesa do bar, puxando pra dentro a fumaça do cigarro, não, Carmem precisava vê-lo, ao menos pra desmerecê-lo de todos os adjetivos. Não via nada além de um homem mal vestido, que fedia o cigarro que fumava misturado com perfumes de pelo menos umas vinte mulheres. Ele tinha aquelas sobrancelhas despenteadas, o suor escorrendo por seu rosto, o primeiro botão da camisa desabotoado, as mãos grandes marcadas por veias a vista e nada desconcentrava aquela mulher, Carmem virou o rosto, fez cara de desdém e desejou nunca mais vê-lo. Sua fama, ao contrário do que acontecia com a maioria das mulheres, não a atraia, sentia repulsa só de imaginá-lo mais uma vez. Ao menos foi o que jurou a si mesma.
Ela voltou pra casa pensando na cena anterior. Como tantas mulheres poderiam dar valor a um homem como aquele? Homem? Ele nem se assemelha a um, um animal, isso sim, e perigoso, muito perigoso.

Não tirou da cabeça aquele corpo, o cheiro forte do cigarro de quinta, o colarinho da camisa mal passado, o botão aberto que deixava aparecer ainda um pouco dos pelos do seu peito, o braço estendido pra sustentar o cigarro nas pontas dos dedos, o cabelo bagunçado, comprido, preto, as raras sobrancelhas desajeitadas, o rosto ensopa de suor, a barba por fazer, os olhos, os olhos azuis que tentavam se esconder quando ele piscava e mesmo assim dava pra vê-los, e a maneira como ele estava sentado. Carmem tentou, mas aquele homem a consumia já havia duas semanas e nunca mais voltou àquele bar, só o cheiro e delirava. Era ridículo tudo aquilo, e batia a mão na cabeça pra tentar esquecê-lo, ele é homem de todas, todas, menos meu, ela lamentava entre suspiros.



Armando saiu do bar e foi pra casa de Anita. Tomou-a em seus braços, forçou-a a beijar-lhe a boca e ela negou, deu-lhe um tapa e cuspiu em seu rosto. Alegou estar cansada de toda essa palhaçada, cansou-se de ser um objeto nas mãos dele, ao mesmo tomou vergonha na cara, empurrou-o pra fora de sua casa e nunca mais quis vê-lo. Em sua cama estava Roberto, o seu homem dessa vez. Armando chorou. Derramou lágrimas de tão bêbado, chutou com força a pedra que tinha na sua frente, acertou um cachorro, latiu alto, mandou-o ao inferno. Quis um colo, e aquela era a sua maior vergonha, um bêbado carente que se arrependera. Não me lembro de ter dito, mas, Anita era sua namorada e também dona de seu coração, bom, ao menos era. Até que ele determinou-se a ficar só. Nenhuma mulher tinha mais a chance de roubar-lhe o fôlego.


Carmem pôs a chave de casa na bolsa, e saiu andando por sua rua, como uma desconhecida, olhando para os lados temendo ser observada, como se a perseguissem, pois estava preste a cometer um crime. Um crime do coração. Nunca acreditou muito nessas coisas de amor à primeira vista, e Armando não é lá homem que se deposite muita confiança não, todo aquele ar de superioridade causava ojerizas à Carmem. Mas isso não vencia os suspirar que dava. Decidiu voltar àquele bar. O mesmo bar que estava cheio do jeito de Armando, suas curvas, seu cheiro de gente. Não tinha certeza. Mas se não fosse, dormiria com a dúvida e acordaria perplexa, cheia de desejos que mal poderia suportar, seria pior que caminhar com aquela incerteza.

Viu Armando na sarjeta. Com o cigarro no canto da boca, dando carinho ao cachorro mulambento, que mexia o rabinho de felicidade. Viu no rosto dele, marcas de lágrimas. Como se um homem daqueles pudesse ter lágrimas para derramar. Já não sabia mais se entrava no bar, ou se tomava um gole de coragem para sentar-se ali ao lado do homem, pra que ao menos o cheiro dele pudesse penetrar em suas narinas, fazendo cócegas, que a faria rir. Não era um cheiro bom, muito menos agradável, era o cigarro, com o suor e perfumes femininos, mas era Armando e todo aquele cheiro, e todo aquele gosto (...)


Marcella Casari

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terça-feira, 1 de setembro de 2009

Amir

Amir carregava sobre si o peso do mundo. Alguma parte desse peso, ele pediu pra ter, outra foi simplesmente jogada em seus ombros, como se o corpo esguio dele pudesse carregar mais do que seu próprio organismo. Eram sorrisos, tristezas, brigas, discussões, lágrimas, abraços, socos, pontapés, beijos, todos ensacados em sacolas plásticos de supermercado e jogados sobre Amir, o rapaz tinha vocação pra capacho. Assim foi com seus pais, avós, tios, e é claro, com sua ex-namorada, que agora não suporta nem olhar pra cara dele, que diz com uma ênfase surpreendente que perdera anos preciosos de sua vida nas mãos daquele, capacho. Alguma coisa de muito ruim ele devia ter feito, talvez tenha sido ele que pregou Jesus Cristo na cruz, ou então aquele que se esqueceu a data de aniversário de namoro, ou o feriado mais importante para sua mãe, ou então que tipo de palavra não agrada um pai. Independente se seus erros cômicos ou não, Amir tinha esse jeitinho todo especial, que atraia qualquer um pra despejar em seus ouvidos palavras muitas vezes rudes, as orelhas dele eram como um vaso sanitário, um banheiro público, que bastava dar descarga pra que toda aquela porcaria que havia dentro do indivíduo fosse embora. Amir era a própria “bosta” descendo pelo esgoto. Por mais que se sentisse entupido de palavras sórdidas, punha no rosto pálido um sorriso que mal podia valer a pena, não conseguia enganar nem se quer o porteiro do condomínio, que, aliás, odeia Amir. Caso amor fosse medido com memória Amir não seria muito bem valorizado, não confiava em seu cérebro nem pra pagar a conta de telefone, ainda mais para dar parabéns em festas de aniversário. Se fosse medido com palavras, Amir morria em silêncio, mas não abriria a boca pra declarar nada, nem sequer um muito obrigada depois de colocarem coca-cola em seu copo na hora do jantar, nem um, por favor, nem nada. (...)

Marcella Casari

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