sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Dezoito anos vírgula dois mil e dez

Nós mulheres chegamos em certa fase da vida em que temos que assumir os riscos de ser mulher. Chega determinado tempo em que não adianta mais esconder; as responsabilidades simplesmente surgem e ainda sentimos a sutil sensação de estarmos trocando de pele, como se parte de nós estivesse presa à necessidade de usar tênis e uniforme escolar e outra metade exigisse salto alto, maquiagem e faculdade. E essa história de fazer dezoito anos não é fácil. As pessoas me olham como se eu tivesse a obrigação de saber como as coisas são pras pessoas que já tem dezoito anos a mais tempo do que eu, como se o calendário marcasse automaticamente em minhas veias todas as minhas responsabilidades, obrigações e deveres para com a minha família e sociedade. Hoje eu sei que posso ir ao hospital consciente de que a primeira dúvida da enfermeira é se eu estou grávida. Agora eu tenho cara de mãe. Ou de irresponsável. Hoje eu posso ir lá na Carisma, sozinha, comprar um body e deixar a vendedora curiosa pra saber se eu vou usar pra “namorar” ou se é pra usar debaixo da roupa. Agora eu posso ficar sossegada, pois, minha intenção de parecer mais velha finalmente deu certo. Meu colega de turma (na faculdade) ainda olha pra mim questionando-se se eu terminei o colégio há muito tempo ou se sou uma jovem inexperiente que acabou de terminar o ensino médio e que ainda tem dúvidas de matemática básica. Não parece, porque dezoito anos sempre subentende experiência.
Agora eu já fico pensando o que reserva meus dezenove anos. Se no dia do meu aniversário eu ganho um body do meu namorado ou aprendo matemática básica de ensino médio. Ou nenhum dos dois. O que é mais provável. E provavelmente é sempre sim.


Marcella Casari


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terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Página Amarela

Biblioteca Municipal. Rua da Solenidad, número 547. Meus livros (futuramente) preferidos ficavam do lado direito, numa estante nova, bem organizada, que cheirava a páginas velhas. As revistas ficavam sobre as mesas numeradas espalhadas por todo o prédio. A princípio tive receio em me sentar numa daquelas mesas, eu não conhecia bem as pessoas que iam àquele lugar, meus colegas de classe com certeza preferiam estar dentro de seus quartos ou salas de jantar a estar ali, provando que tinham algum interesse em ler fora da escola. Eu tive medo. Mas a curiosidade me instigava. Puxei uma cadeira, sentei-me cuidadosamente e folheei algumas páginas, passando as palavras pelos olhos, sem o interesse de decifrá-las e entender o contexto maior que as organizava.
Passadas duas horas e eu não havia formado nenhuma frase que fizesse sentido, não que as palavras emaranhadas nas folhas não me deixassem desejoso de conhecê-las mais e mais, mas eu tive receio de me pregar nelas e desviar a atenção do movimento que me rodeava. Bom. Movimento nenhum, apenas eu a revistas e todas as cadeiras vazias.

Até que meus olhos crucificaram-se numa imagem que mais tarde resumiria toda a minha vida. Uma mulher. Não. Não que eu nunca tivesse visto uma mulher daquele jeito. Mas não foi o jeito dela. Foi o meu. Eu tinha nove anos, poxa. Eu estava em uma biblioteca, cheia de livros, revistas, palavras, informações, detalhes, corpos esculpidos com perfeição. Calma. Eu disse corpos esculpidos com perfeição? Sim. E ali eu vi até a sombra que o corpo dela despejava sobre o chão do estúdio fotográfico, apenas ela, algumas luzes, o fotógrafo e atenção. Muita atenção. Ela era perfeita, até aquele momento ela era a única coisa perfeita daquela biblioteca. Não resisti e a levei comigo, rasguei aquela página da revista, dobrei com cuidado, coloquei no bolso da calça e sai correndo. E eu gostei de tê-la posto no bolso da calça (...)

Marcella Casari

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