quarta-feira, 17 de outubro de 2012

De homem, mesmo

 Eu gosto de homem. Mas eu gosto de homem macho. Que fala na cara, que diz na lata, que sente, que pensa e que age como um homem. Eu gosto de homem com cara de homem, com jeito de homem, que se diz homem, e que veste, come e anda como homem. Eu gosto de homem que sabe quando ser menino. Homem que sabe ser engraçado, sabe mandar, mas também sabe obedecer. Porque homem tem que ser homem o tempo todo, em todo lugar, com todo mundo. Não precisa ter voz grossa. Não precisa de terno preto e camisa branca todo dia. Pode ser de chinelo e bermuda mesmo. Pode ser de cabelo comprido, de barba bem feita. Mas pode ter pelo na cara, o cabelo raspado, tatuagem e usar óculos. Pode usar xadrez, não comer carne e andar de bicicleta. Pode ter um carro, ser empresário, adorar gravata e cuidar da pele. Pode não gostar de futebol, ter as mãos curtas e usar roupas estranhas. Pode também não gostar de usar roupas, ser meio hippie e alto astral. Homem pode ser roqueiro, até funkeiro, DJ, pagodeiro, ou só gostar de novela. Ou só gostar de filme. Ou não gostar de nada. Ser careca, só pensar no trabalho e em escrever um livro. Homem não tem receita mágica, nem precisa ser o cara ideal, do corpo ideal, do cabelo e jeito ideal. Por favor príncipe encantado, vê se me erra. Porque eu gosto de homem. Mas eu gosto de homem de verdade.


Marcella Casari
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domingo, 12 de agosto de 2012

Meu Reino Unido

Ele tinha um acesso fácil às minhas necessidades e carências. Deixa um homem perto de uma mulher como eu e vê no que dá. Quase nada. Mas esse quase nada, numa crise de meia-meia-idade é muita coisa. É quando a via está obstruída de caras muito cheios de si e de sorrisos espaçosos e chega um homem meia-boca e de cara amarrada pra mudar o rumo das coisas. Eu estava de saco cheio dessas mesmices, desse cotidiano piegas e ele vinha com um papo esquisito, de um jeito incomum e sério. Muito sério. Sem piadas. Sem indiretas. Sem meias-verdades. Vestido e encarnado de escárnio, ofensas e ironia. Muitas mulheres apresentariam a porta de saída pra ele, mas eu estava mais interessada em ver como alguém poderia ser tão chato, tão irritante e envolvente daquele jeito. Eu disse bem-vindo à minha crise de meia-meia-idade e ele rude, não disse muita coisa. Mudou de assunto. Ser solícito e gentil. Isso não é com ele. Eu prometia pra mim mesma: larga mão de ser boba, mulher, ele é um pé-no-saco! Mas e daí? Eu sou mil vezes mais pé-no-saco que muito cara por ai. E olha que tem como eu ser assim com muito mais eficiência. Era uma espécie de competição. Dentro da minha cabeça. Ele me tirava de campo o tempo todo e eu voltava, pelas beiradas, disfarçada de desinteressada e ele me deixava jogar. Até que eu propunha alguma coisa mais séria, um papo mais de verdade, umas coisas mais reais, mais honestidade, mais sinceridade, mais verdade, mais, mais e nada. Silêncio era um charme pra ele. Silêncio, seriedade, cara-fechada, sorriso de canto de boca e outras coisas que eu reparava enquanto tentava voltar por outras beiradas, com outros disfarces. Desarmada, desprotegida, vulnerável. Mas nada mais funcionava. Nada mais funcionou. E as vias se obstruíram de novo, desses caras bonitos, cheios de si e de sorrisos espaçosos. 

Marcella Casari
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sexta-feira, 25 de maio de 2012

Queda

Ninguém gosta de cair. Porque cair machuca. Cair dói. Porque quando a gente cai as pessoas ficam olhando pra nós. E perguntando: como será que ela fez isso? Como? Ela não viu o que tinha no caminho? É que às vezes a gente não olha por onde anda. A gente simplesmente caminha, bela e esbelta, achando que tá tudo bem. Porque as vezes tá mesmo. Quando a gente cai, normalmente não tem ninguém pra segurar a nossa mão. Só tem os olhares e cochichos, risos irônicos. Vários pra acusar. Mas nenhum pra consolar. Às vezes dói tanto que a gente nem consegue voltar a andar. As vezes a gente cai pro lado errado e erra o caminho. Às vezes a gente se perde mesmo. E a gente sai mancando, com a calça rasgada no joelho, com o salto quebrado, com a bolsa suja, mas vai. Porque não dá pra ficar parado. Se ninguém serve pra te dar apoio de que vale se sentar na calçada e ver a vida passar dando risada de você?! Algumas vezes não dá. A coisa parece tão certa, o caminho parece tão bom, que a gente não vê as pedras, os galhos, o buraco. Tem vez que a companhia é ideal. Mas não serve pra prestar atenção no caminho. Não seve pra nos alertar. Não seve pra nos conduzir. Provavelmente quando você cair. Porque você vai. Ela vai rir também. Não vai aguentar e vai despencar em gargalhadas. Porque a gente vai cair. Tem gente vai querer te ajudar a continuar sentado. Mas tem gente que vai largar o filho sozinho com um estranho só pra poder te levantar. São esses esforços que a gente nunca vê as pessoas fazerem. Mas que a gente acredita que existe. Porque não dá pra acertar sem errar. Não dá pra se levantar sem cair. É preciso muita pedra, muito galho, muito buraco por ai pra gente aprender a dar valor nas coisas. Às vezes é preciso ralar o joelho na calçada e se apoiar na placa de trânsito. Só não deixe os buracos muito fundos te impedirem de ver a luz do sol. Porque a sombra que você vir será sempre de uma mão pronta pra te ajudar.



Marcella Casari
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sexta-feira, 11 de maio de 2012

Da Isa

A gente nunca sabe quando nossas vidas vão mudar. Quando uma coisa simples deixa de ser simples e sozinha pra se tornar complexa e acompanhada. Você me fez sentir assim. Uma vez eu estava como quem vive a vida e deixa as coisas acontecerem. Eu comecei a me importar mais quando eu vi que você fazia toda a diferença. Me causou muito espanto. Me causa até hoje. A falta que você me faz. Eu não tenho palavras pra explicar. Ou talvez eu tenha. Mas eu fico tanto tempo pensando. Pensando em você. Que as vezes esqueço de mim. Se tornou tão natural. Respirar e procurar seu oxigênio por ai. Como se fosse possível encaixar um pouco mais de você no meu cotidiano. As vezes eu peço pra deus, pros astros ou pra seja lá quem for, que simplesmente cuide do meu amor. Porque uma vez, você não percebeu, mas eu coloquei meu coração bem no centro das suas mãos. Você o envolveu cuidadosamente. Eu me lembro disso. Não sei se você sabe. Não sei se você sabia que tinha tanto poder sobre mim. Talvez eu tivesse medo de confessar que a minha vida sem você não faria o menor sentido. Você me mostrou a trilha. As pegadas confiáveis. O caminho suave. A estrada iluminada. E eu não me canso de olhar pro lado e ver você procurando a minha mão pra gente andar junto. Porque é disso que eu tô falando. Eu tô falando dos nossos pés na mesma trilha. Na mesma lama. No mesmo rio. Nas mesmas pedras. Sem medo de reclamar. É assim que eu me sinto de vez em quando. Vai. Me mostra pra onde você quer que eu vá que eu vou. Eu simplesmente vou. Porque eu sei que você não vai mais a lugar nenhum sem mim. Eu sei que você sabe o que eu estou pensando. A gente combina tanto que eu me confundo com você. A gente sabe que pra tá perto não precisa tá junto. Mas que estar perto só precisa de nós. Nós bem fortes. 


Marcella Casari
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domingo, 22 de abril de 2012

Brown Eyes

Durante a indecisão ela apenas fechava os olhos com bastante força. Com bastante vontade de chorar. Mas sem decência alguma pra derramar uma lágrima. Ela batia com as unhas curtas na mesa, se perguntando: o que é que estava acontecendo. Ficava balançando na cadeira de um lado pro outro, as vezes rodopiava no eixo e se deixava levar pelos pensamentos. Cerrava os punhos com firmeza e depois de interromper o sangue, puxava o oxigênio pra dentro e pedia pra que isso acabasse logo. Não tinha lógica alguma. Não tinha o mínimo de intervenção de qualquer habilidade racional. As coisas simplesmente aconteciam fora do controle. Durante algumas horas ela conseguiu deixar um pão mordido de lado e um copo de coca-cola perdendo o gás de outro. Não teve fome, porque mais uma vez teve sede. E refrigerante não mata sede. Não pára com o aceleramento do coração. Nem água. Ela mexia no cabelo e alisava a própria blusa, limpando as mãos semi-suadas. Tudo aconteceu ao mesmo tempo de uma vez. E pensou em como foi deixar seu ego se entregar nas mãos de outro. Assim. Tão fácil. Sem a coragem de todos os atos de uma pessoa sincera. Que olha nos olhos. Que pisca mais devagar. Que pega na mão. Que conduz. Que condiz. Que fala baixo, demorado. Que cuida pro outro entender. Que descreve. Que tem paciência, carinho na voz e sossego. Nada havia acontecido e era como se o mundo não fosse mais o mesmo. Nenhuma mudança física que acarretasse em reações repulsivas. Nada. Nunca.



Marcella Casari
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quarta-feira, 18 de abril de 2012

Da parte que me cabe

Eu era pura simplicidade, meus cabelos já estavam sujos e minha maquiagem estava misturado com o meu suor. O dia estava extremamente quente e eu vestida de blusinha, calça jeans e chinelo. Nada poderia me incomodar mais do que a necessidade de vestir uma calça jeans num dia daqueles, eu não podia correr o risco de deixar ele ver minhas pernas mal depiladas. Eu não podia prender o cabelo de qualquer jeito, meu rosto ficaria mais fino e mais magro. Eu não podia tirar os óculos porque incomodava os olhos. Eu não podia ficar com eles porque me deixavam com cara de nerd. Eu me camuflei a tarde toda, pra tentar me adequar àquilo que eu achava que seria interessante pra ele. Eu não tive tempo de por a roupa mais bonita que eu tinha na mala, e nem de fazer chapinha e muito menos de arranjar um prestobarba e dar um jeito nos pelos que cresciam de forma voraz nas minhas pernas. Aquela era eu. Com o cabelo bagunçado, de óculos sujos, e vestida de forma inadequada para o clima. 
Me lembro bem do quanto eu estava orgulhosa dos meus dedos dos pés naquele dia. Eu tinha passado um esmalte tão bonito, combinava com a estampa do chinelo. O que me incomodava mais era a minha calça que vivia caindo, me deixando ou mais magra ou então mais pobre. Eu usei blusa de alcinha por três dias, no quarto dia eu tiro da mala a única camiseta que eu tinha. Pra ajudar no calor eu acho. O desodorante parecia estar em mim as doze horas limites, mas eu tinha acabado de retocá-lo (só pra garantir). Porque eu tenho essa capacidade incrível de estar menos apresentável nos momentos em que eu mais preciso, ou quero. Minha conversa foi a mesma de sempre. Minha vida sempre desinteressante, a faculdade, o clima, minha tatuagem feita na adolescência. Até hoje eu não sei como isso foi acontecer. Uma tatuagem aos quinze anos. E e nem era uma menina rebelde. Eu nem sou. Daquele tempo pra cá pouca coisa mudou. Eu só cortei o cabelo e me tornei uma dependente de maquiagem. Eu me importei com a minha aparência naquele dia sim, eu me sentia incomodada sim. Mas eu me senti acolhida. De alguma forma ele sabia o que dizer. Sim. Era irritante pra caramba. Mas de uma maneira quase agradável. Quase dava pra querer que o momento se estendesse um pouco mais. Ele parecia um caso mal resolvido. Não. Tipo. Um mistério, um enigma. Era a própria esfinge na minha frente: decifra-me ou devoro-te. Mas eu não me importava com nenhuma das opções. Eu acabei escolhendo as duas mesmo.  Ele tinha uma personalidade um pouco avessa à minha, um pouco parecida as vezes. Em alguns momentos eu tinha vontade de falar sem parar, mas ele parecia em outro mundo, então eu fiz o que faço de melhor e escutava, com um pouco de dificuldade, mas escutava. Parecia interessante demais pra eu me distrair com tantas outras vozes. Estava muito calor. E eu não sou muito de beber água. Não mesmo. Mas eu tive sede. Sabe quando a garganta seca, a língua seca, até o estômago seca? Então. Mas não era só o calor. Eu nunca soube demonstrar interesse. Ta ai uma coisa que eu sempre quis dizer, mas eu nunca lembrava. Então ele falava, e eu buscava no meu leque de conhecimentos alguma coisa pra dizer, pra que aquilo não acabassem em: arrãn. Mas eu falhava na maioria das vezes. Eu caia nesse clichê e enfim. Eu não sei começar nada, conversa muito menos. Eu estava interessada. Eu ficava vendo a hora no celular e aquilo me incomodava até mais porque sei lá, o tempo estava voando demais. Não vou dizer que me lembro de tudo o que ele disse porque seria mentira. Eu não confio nada nada na minha memória. Ele não tinha um cheiro. Não que isso fosse importante, mas eu acho tão legal quando as pessoas lembram umas das outras pelo cheiro, pelo perfume, enfim. Mas ele não tinha cheiro de nada, o dia não tinha cheiro de nada. Eu só me lembro de sentir. Isso acontecia com frequência. O calor. A sede. O suor. Na verdade eu nunca fui muito apegada aos detalhes de pessoas desconhecidas. Então eu não me lembro o que ele estava vestindo. Eu não sabia de nada sobre ele. Não que agora eu possa escrever uma biografia sobre ele. Longe disso. Mais as coisas se tornaram mais, como eu posso dizer, mais próximas. E cada vez mais distantes. Porque ele é um paradigma ambulante, uma controvérsia de duas pernas, um antagonismo bem alto. Eu não sabia o que pensar. Eu só podia sentir. É engraçado eu me sentir culpada por sentir. Ninguém deveria se sentir culpado por sentir nada. Só por NÃO sentir nada. Entende? Era isso que eu sentia. Uma necessidade de olhar olhos nos olhos, que eu naturalmente tenho, mas que eu ocasionalmente não faço. Eu sou baixinha. Eu aparento ser mais nova. Eu acho. Alguns dizem. Enfim. Como eu podia convencer aquele homem de que eu não sou mais uma adolescente no ensino médio? Como dizer coisas inteligentes numa tarde tão quente? Como parecer adulta de calça jeans caindo e chinelo havaiana? Eu me preocupava mesmo com essas coisas. Vai ver que é por isso que eu ainda preciso me afirmar com as pessoas. O problema  deve estar comigo. Mas a questão é: o que eu precisava fazer pra chamar a atenção dele só pra mim? E por que eu estava tão preocupada com isso? Bom, essa segunda questão só me apareceu dias depois. Porque eu estava sentindo e não pensando. Eu estou enfatizando essa coisa de sentindo porque ela é bem importante. Não justifica. Mas explica bem. Talvez não tão bem, mas eu só estou preocupada com isso agora. Ele não encostou em mim, ele não olhou pra mim de forma de diferente, ele não falou nada demais, foi só um abraço e um beijo no rosto horas depois. Não era pra ser nada. Mas eu não consigo esquecer. 



Marcella Casari
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Frases para Recordar

"Você não é tão bom assim. Eu repito pra mim mesma. Quando de repente eu me vejo esvaziando a gaveta atrás de um creme hidratante corporal, e me certifico que estar aqui no meu quarto é quase tão bom quanto as nossas conversas no sofá da sala na casa da sua mãe. Eu espero realmente estar pronta. Porque eu não quero me espantar com o seu sorriso irônico mais uma vez. Já basta o bafo de monotonia que eu solto toda manhã ao acordar. Eu me reviro na cama, penso em um milhão de motivos: vale muito mais a pena ficar aqui o dia inteiro. Eu me recolho na cama, abro o frasco transparente e derramo esse creme hidratante corporal primeiro nas pernas, eu sei que você gosta delas. Mas se não fossem por elas, por qual outra razão você ainda me ligaria de madrugada? De certo seus vizinhos são muito mais barulhentos que nós. Eu espero. E porque você não está aqui eu penso. Com certeza você não deve estar muito longe daqui. Você costuma jantar no restaurante caro aqui perto de casa. Mas com o tempo eu me preocupo, sabe. Porque esse excesso de creme faz mal pra pele, eu li uma vez na revista. Uns anos atrás. Mas as coisas não mudam assim do nada, tão de repente, né? Você provavelmente perdeu o número do meu telefone. Ou o restaurante estava fechado. Ou você confundiu o meu prédio com o da frente. Podia ser você aqui, passando o creme nos meus braços enquanto eu tento me convencer que você não vale lá muito mais do que eu gostaria de escrever sobre você agora".


"As vezes eu me sinto na obrigação de ser educada com você, sabe. Quando você entra pela porta todo dia às 17h30, eu sinto instintivamente a necessidade de corresponder à sua carência de ouvir uma palavra de consolo. Mas o que acontece na verdade é que é tudo mentira, é tudo uma encenação, porque o que acontece aqui quando você não está... você não faz ideia do que é não estar com você. Você não imagina o que é guardar tudo isso dentro do peito sem ter tempo de esvaziar. Eu sinto raiva. Sinto mesmo. Mas o que eu mais sinto é você. E a vontade que eu tenho de ser sua o tempo todo".


"Eu penso como seria se daqui uns anos se você agisse como eu agi em minha juventude, Dora. Em alguns momentos eu tive dificuldades em aceitar como eu era e como a vida se propunha pra mim. Alguns planos não deram certo, sabe. E dessa forma, vendo você assim, eu fico com medo que minha vida se repita através da sua (...). Mas isso não vai acontecer, não é? Venha cá..., lembra tudo o que eu disse a respeito do amor? Simplesmente esqueça".


"Pense assim. Nada mais será como antes. E nem por isso você precisa perder o entusiasmo e nem deixar de ter curiosidade. Eu aprendi que esperar o futuro acontecer não tem nada a ver com ficar cismado com o passado ou simplesmente acreditar que o futuro vai ser sempre melhor. Aceitar as mudanças como elas se apresentam faz parte, Alice. Você deveria saber disso mais do que ninguém, não acha?".



Marcella Casari
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Cold

"Ainda com os lábios secos ele cruzou os braços sobre o peito e se escondendo o máximo que pode, flexionou também as pernas rijas e pálidas esperando o inverno daquele ano passar mais rápido através de seu corpo esguio e amarelado. Com a língua úmida de sede cobriu a boca com uma saliva ácida e amarga. Numa tentativa frustrada de umedecê-los. Sem sucesso puxou as magas da camiseta desbotada a fim de cobrir os dedos enrugados e frios. As calças já estavam curtas demais e os pés descalços sentiam o gelo cortando como navalha. Nem o fogo queimaria tanto. Jorge encolheu-se o máximo que pode, mas não conseguiu despistar o vento forte, este que já fazia latejar seu sangue como num bombardeio ininterrupto de neve e fogo. Seu único encosto é a parede fria de um bordel abandonado do século XIX, ainda dá pra perceber o aroma dos charutos caros e os perfumes baratos que circulavam por ali como se tivesse sido a pouco a última noite desses boêmios. Mas nem ali poderia servir de abrigo, Jorge já mal podia mexer as mãos...".



Marcella Casari
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Paz

Eu estive completamente vazia por esses últimos dias. Foi irônico me manter por tanto tempo com uma ferida aberta no meio do peito, apenas esperando que o tempo cicatrizasse com cuidado. O que eu poderia dizer sobre esse fato apenas consumiria meus instantes de energia, esses que eu conquistei com suor e sangue pra fechar esse buraco com minhas próprias mãos, porque se alguém visse, ele aumentaria ainda mais. Pois seriam olhos e comentários sobre mim e em cima de mim, e com certeza uma ferida se transformaria em outras mil e tomariam conta de mim. Eu jamais me recuperaria. Eu pensei. Nem dessa. Eu jamais me recuperarei. Uma ferida dessas, cravejada no peito, estampada no corpo. Uma coisa dessas não se esconde por muito tempo. Eu não estou mais pensando nela. Nem na dor, nem no tamanho, nem no vazio. É importante reforçar que minhas mãos aprofundavam ainda mais aquele orifício inútil que eu sem querer cultivei dentro de mim, quanto mais eu tentava disfarçar maior ele se tornava. Então eu descansei minhas mãos e meus braços. Eu me sentei sobre a sombra de uma árvore, eu destranquei uma porta que estava emperrada na minha alma, eu me deitei na grama verde de algum lugar lindo, eu simplesmente me deixei levar por uma voz suave que vinha calmamente sussurrar em meu ouvido, me deixei conduzir cegamente pelo caminho que aquela voz dizia ser o certo, o bom, o perfeito e o agradável. E Ele estava certo. Meu vazio foi completamente fechado, lacrado e selado pelas doces palavras que eu escutei naquela noite. Eu pude então dormir em paz. E estar em paz.



Marcella Casari
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