quarta-feira, 18 de abril de 2012

Da parte que me cabe

Eu era pura simplicidade, meus cabelos já estavam sujos e minha maquiagem estava misturado com o meu suor. O dia estava extremamente quente e eu vestida de blusinha, calça jeans e chinelo. Nada poderia me incomodar mais do que a necessidade de vestir uma calça jeans num dia daqueles, eu não podia correr o risco de deixar ele ver minhas pernas mal depiladas. Eu não podia prender o cabelo de qualquer jeito, meu rosto ficaria mais fino e mais magro. Eu não podia tirar os óculos porque incomodava os olhos. Eu não podia ficar com eles porque me deixavam com cara de nerd. Eu me camuflei a tarde toda, pra tentar me adequar àquilo que eu achava que seria interessante pra ele. Eu não tive tempo de por a roupa mais bonita que eu tinha na mala, e nem de fazer chapinha e muito menos de arranjar um prestobarba e dar um jeito nos pelos que cresciam de forma voraz nas minhas pernas. Aquela era eu. Com o cabelo bagunçado, de óculos sujos, e vestida de forma inadequada para o clima. 
Me lembro bem do quanto eu estava orgulhosa dos meus dedos dos pés naquele dia. Eu tinha passado um esmalte tão bonito, combinava com a estampa do chinelo. O que me incomodava mais era a minha calça que vivia caindo, me deixando ou mais magra ou então mais pobre. Eu usei blusa de alcinha por três dias, no quarto dia eu tiro da mala a única camiseta que eu tinha. Pra ajudar no calor eu acho. O desodorante parecia estar em mim as doze horas limites, mas eu tinha acabado de retocá-lo (só pra garantir). Porque eu tenho essa capacidade incrível de estar menos apresentável nos momentos em que eu mais preciso, ou quero. Minha conversa foi a mesma de sempre. Minha vida sempre desinteressante, a faculdade, o clima, minha tatuagem feita na adolescência. Até hoje eu não sei como isso foi acontecer. Uma tatuagem aos quinze anos. E e nem era uma menina rebelde. Eu nem sou. Daquele tempo pra cá pouca coisa mudou. Eu só cortei o cabelo e me tornei uma dependente de maquiagem. Eu me importei com a minha aparência naquele dia sim, eu me sentia incomodada sim. Mas eu me senti acolhida. De alguma forma ele sabia o que dizer. Sim. Era irritante pra caramba. Mas de uma maneira quase agradável. Quase dava pra querer que o momento se estendesse um pouco mais. Ele parecia um caso mal resolvido. Não. Tipo. Um mistério, um enigma. Era a própria esfinge na minha frente: decifra-me ou devoro-te. Mas eu não me importava com nenhuma das opções. Eu acabei escolhendo as duas mesmo.  Ele tinha uma personalidade um pouco avessa à minha, um pouco parecida as vezes. Em alguns momentos eu tinha vontade de falar sem parar, mas ele parecia em outro mundo, então eu fiz o que faço de melhor e escutava, com um pouco de dificuldade, mas escutava. Parecia interessante demais pra eu me distrair com tantas outras vozes. Estava muito calor. E eu não sou muito de beber água. Não mesmo. Mas eu tive sede. Sabe quando a garganta seca, a língua seca, até o estômago seca? Então. Mas não era só o calor. Eu nunca soube demonstrar interesse. Ta ai uma coisa que eu sempre quis dizer, mas eu nunca lembrava. Então ele falava, e eu buscava no meu leque de conhecimentos alguma coisa pra dizer, pra que aquilo não acabassem em: arrãn. Mas eu falhava na maioria das vezes. Eu caia nesse clichê e enfim. Eu não sei começar nada, conversa muito menos. Eu estava interessada. Eu ficava vendo a hora no celular e aquilo me incomodava até mais porque sei lá, o tempo estava voando demais. Não vou dizer que me lembro de tudo o que ele disse porque seria mentira. Eu não confio nada nada na minha memória. Ele não tinha um cheiro. Não que isso fosse importante, mas eu acho tão legal quando as pessoas lembram umas das outras pelo cheiro, pelo perfume, enfim. Mas ele não tinha cheiro de nada, o dia não tinha cheiro de nada. Eu só me lembro de sentir. Isso acontecia com frequência. O calor. A sede. O suor. Na verdade eu nunca fui muito apegada aos detalhes de pessoas desconhecidas. Então eu não me lembro o que ele estava vestindo. Eu não sabia de nada sobre ele. Não que agora eu possa escrever uma biografia sobre ele. Longe disso. Mais as coisas se tornaram mais, como eu posso dizer, mais próximas. E cada vez mais distantes. Porque ele é um paradigma ambulante, uma controvérsia de duas pernas, um antagonismo bem alto. Eu não sabia o que pensar. Eu só podia sentir. É engraçado eu me sentir culpada por sentir. Ninguém deveria se sentir culpado por sentir nada. Só por NÃO sentir nada. Entende? Era isso que eu sentia. Uma necessidade de olhar olhos nos olhos, que eu naturalmente tenho, mas que eu ocasionalmente não faço. Eu sou baixinha. Eu aparento ser mais nova. Eu acho. Alguns dizem. Enfim. Como eu podia convencer aquele homem de que eu não sou mais uma adolescente no ensino médio? Como dizer coisas inteligentes numa tarde tão quente? Como parecer adulta de calça jeans caindo e chinelo havaiana? Eu me preocupava mesmo com essas coisas. Vai ver que é por isso que eu ainda preciso me afirmar com as pessoas. O problema  deve estar comigo. Mas a questão é: o que eu precisava fazer pra chamar a atenção dele só pra mim? E por que eu estava tão preocupada com isso? Bom, essa segunda questão só me apareceu dias depois. Porque eu estava sentindo e não pensando. Eu estou enfatizando essa coisa de sentindo porque ela é bem importante. Não justifica. Mas explica bem. Talvez não tão bem, mas eu só estou preocupada com isso agora. Ele não encostou em mim, ele não olhou pra mim de forma de diferente, ele não falou nada demais, foi só um abraço e um beijo no rosto horas depois. Não era pra ser nada. Mas eu não consigo esquecer. 



Marcella Casari
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2 comentários:

Anita disse...

oh. achei tão lindo!

Utak disse...

Engraçado, não tinha visto que você estava escrevendo ainda. Bom saber que você ainda escreve. Bem, perguntaria como anda a vida, mas me parece mais interessante procurar por aqui algum texto, eles vão me contar.
Como anda a vida? há muito tempo não entro por aqui, passei pra dar um oi e dizer que o texto é muito interessante. Esses encontros e desencontros... Sempre falam muito de quem somos nós.