terça-feira, 28 de julho de 2009

Lembrança Matinal

Estava completamente engasgada no congestionamento dos meus pensamentos. O engarrafamento fuzilava meus sonhos e parava o ar dentro do meu pulmão, de forma não nociva, nem corrosiva. Uma ou outra folha pairava no ar, com algumas mensagens escritas, mas eu não conseguia ler, esqueci-me de meus óculos na gaveta do criado-mudo e agora estou tão longe de casa, ou é apenas a preguiça. Presa dentro de quatro paredes com o ar-condicionado desligado, um homem a minha frente, dizendo palavras que meus ouvidos entendiam muito bem, eu capitava tudo o que ele me dizia, transpondo ao meu caderno de capa dura. Batia o sinal e eu continuava ali, como se estivesse amarrada, com uns pensamentos na cabeça que buzinavam pra ir mais rápido, e nada saia do lugar, eu sonhava acordada quando tinha tempo e fechava a cabeça quando um homem se posicionava à minha frente, com cara de intelectual, desejando me passar umas sabedorias. Eu estava tão alheia que prestava atenção em tudo. Ou nada.

Marcella Casari

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Um amado amigo .

Havia um silêncio naqueles dois, dentro e por fora só o bartulho ensurdecedor de duas bocas completamente caladas, que jaziam dentro de uma sala mal iluminada, apenas pra dissipar as saudades, um continha no outro a falta mais sensata e comum. Um falava mais que a porta, a outra calava quando não podia. Não havia mais nada a se contemplar, os olhos que permaneciam abertos não enxergavam quase nada, e eram dois irmãos ali sentados.
Na realidade o fato de não ter luz não dizia nada se nem mesmo a falta de sorrisos fez dos dois menos satisfeitos num reencontro desses. Um abraço guardado dentro dos braços dela, uma alegria meio indigesta dentro dele. Nem um nem outro, moviam um músculo se quer e que poderia dizer mais que o silêncio? Que balbuciava perguntas e respostas de uma amizade bem formada, e cada um na sua própria divisão de pensamento, compartilhando as vezes o que não se diz, se vê, e se sente, ou não.


Marcella Casari

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Clara

Clara não toma café, nem bebe leite pela manhã, não caminha do lado contrário ao dos carros, gosta de verde e não de rosa. Não combina as peças de roupa e sempre prende o cabelo pra sair de casa. Ela não gosta de escrever de caneta e nem de pintar as unhas do pé. Um dia ela saiu sem guarda-chuva, molhou-se e ficou brava. Ela não planeja e toma cuidado com avisos os que sua mãe dá. Sempre lê a bula do remédio e às vezes se esquece de desligar o despertador. Ela tem medo de ser ingênua e cria suas próprias divisões, seu próprio abrigo para dias nublados e um carisma pouco confiável dentro das mangas. Sorri quando quer chorar, e duvida de si mesma, de vez em quando faz comida e não acende o fogão, ou então deixa o arroz queimar, pois estava distraída no telefone. Clara pinta as unhas da mão de vermelho, mesmo gostando mais de azul, ela se esconde atrás dos óculos achando que pode ficar mais bonita e calça seu tênis pra chegar mais rápido. Ela gosta de ser elogiada, mas tem medo que o rapaz não goste dela. Gosta mais de goiaba do que de manga, não se suja pra tomar sorvete e sempre limpa as mãos quando parecem estar sujas.
Clara não sabe se prefere a direita ou a esquerda, é destra e se distrai escrevendo com a outra mão. Sente e sono e não dorme, sente fome e não ataca a geladeira; sente frio e cobre as mãos, os pés. Clara sempre lê os livros que são os mais lidos, gosta de usar palavras difíceis, acha bonito não ser bonito e ouve músicas chatas. Não gosta de ficar sozinha, mas tranca a porta do quarto para não ser incomodada, não faz almoço se estiver só, chora quando ninguém vê, guarda um mundo pra si e quer dividi-lo as vezes, quase sempre não tem ninguém. Não cumprimenta estranhos na rua, é grossa e diz tudo de uma vez, parece não ter medo, mas é covarde, sente pena e é um pouco desajuizada. Clara não tem pressa, mas se sente agoniada, está sol e lá dentro ela sente frio. Ela não gosta de gostar e mesmo assim gosta.


Marcella Casari

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sexta-feira, 24 de julho de 2009

Ana

Ela prendia e soltava o ar, como se fosse mais forte que qualquer um. Colhendo com a boca trancada um sentimentalismo que causava inveja. Vinha a tona mais um pouco de gás carbônico forçado, dolorido e manchado de saudades. Ana escondia nas mangas um suspiro atrás do outro, com cenas coloridas que ficavam na sua mente. Tinha na memória traços bem marcados de pés bem calejados, mãos machucadas e na face uma alegria tão alheia que a perfurava toda. Não contava com outros olhos observando seus atos, não concebia na cabeça uma vontade tão grande quanto a dona dos suspiros. Ela fechava e abria os olhos pra se perder um pouco mais, abrindo vaga pra quem quer que fosse o corajoso a perpetuar dentro dela. Mas ela estava fraca no sofá da sala, a televisão desligada, sem som nem nada, Ana prendia e soltava o ar como se estivesse fraca, foi aquela falta, sabe quando se faz falta e se sente em dobro, quando a saudade toma conta, invade, mais infeliz é quem a deixa dominar. E não tem coragem de negar. Ana não tinha coragem de negar.

Marcella Casari

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quinta-feira, 23 de julho de 2009

Resposta

Ela batia os pés, apressada
Sabia não restar mais dúvidas
De que finalmente o encontrara.
Já não sentia mais o frio que lhe
Cobria a roupa e seus cabelos estavam
Soltos, ao ombro. Caminhava sublime.
Já não pensava em mais nada.
Abriu a porta, seus olhos reluziram,
Sua felicidade estava nas mãos do
Cavalheiro de olhos castanhos,
Cabelos escuros, sorriso marcante.
Foi aquela a razão de seu último
Sorriso. Mas ele puxou-a com força,
Uma outra força, ela não esperava.
Via no corpo dele, todo o prazer de vê-la
Sangrar até o último suspiro, seu corpo
Que emanava dor, o encantava.
O pouco que restava dela era consumido em
Suspiros agonizantes, que diziam mais
Que qualquer palavra.
Ela batia os pés, com medo.
Sabia não restar dúvidas
De que finalmente encontrara
Na morte o que lhe fazia bem.
A Dor.


Marcella Casari

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segunda-feira, 6 de julho de 2009

"Uma parte que não tinha"

O que ele precisa está bem ali. Bem ali, à direita. Não. Mais à direita. E um tanto do outro lado, onde seus olhos não alcançam. Uma curva sinuosa, que desliza, uma curva um tanto íngreme, áspera, azeda, cheia de outras curvas. O nome dela sinaliza outros pensamentos, complicados de se desvendar, armas secretas que atiram cegamente e deixam o alvo mais atônito que o próprio atirador. Carlos sossega na cadeira, ajeita-se pacificamente, ajeita os óculos com o dedo indicador da mão direita, levanta as mangas da camiseta e deixa o corpo baixar um pouco para se sentir um pouco mais confortável. Não sabe se sai ou se fica na cadeira, não sabe se bebe um copo de água ou a jarra toda.
Ele toma umas decisões e levanta-se da cadeira direto para sabe-se lá onde, estava ali todo acomodado, a cadeira está até quente por causa do calor que emana de seu corpo, deixando uma marca de dedos suados nos “braços” da cadeira giratória. Carlos pega um copo, enche de água, bebe, bebe sem parar, coloca o copo sobre a mesa e dá um suspiro de satisfação, repete a dose, repete mais duas vezes e se apóia contra a mesa, apóia-se de costas, colocando todo o seu peso sobre suas mãos. Ele sai dali com um ar purificado, vai ver foi a água, a água pura congelando sua garganta, ou então o alívio de sair daquela sala impregnada com uns pensamentos, complicados de se desvendar.
Seus passos tornam-se severamente mais rígidos, fortes e marcantes, impactam ao tocar o chão, fazendo um barulho incômodo e inusitado, parece música pra quem vê, é um furor pra quem anda. Carlos o dono daqueles dois pés que marcham, não andam, marcham, causando ao redor um conflito, os ouvidos já cansados se incomodam. Ele mesmo se incomoda e resolve se sentar. Puxa uma cadeira, acomoda seu corpo, sua alma, seu coração. Ali, na frente de outras pessoas, ergue as mãos pro céu, e clama, sim, em voz alte ele pede socorro, ele pede por ajuda, por um auxílio, podia muito bem esperar um pouco, trancar-se no seu quarto e sozinho se desmanchar, mas ele não quis outro lugar, ele não quis, ele escolheu. Ali desmancha-se diante de Deus e de outros homens que fingem não estar vendo, que fingem não estar ouvindo.
(...)

Marcella Casari

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domingo, 5 de julho de 2009

"De ontem em diante"

Dentro da noite, Amália desce as escadas e penetra na multidão, encosta seu corpo em outros corpos, pede licença e distancia-se o mais possível daquele aglomerado de corpos suados e alegres. Amália cai na graça de encontrar Roberto. Cai dentro de seu sorriso e se aproxima, não descaradamente, não tão rápido, nem até tão perto. Ele a vê tão próxima que nem sabe ao certo quanto tempo passou, desde estar ali de pé, até ela estar ali, ao seu lado, perto. Ele a acompanha pra um lugar mais solitário, que mesmo um acompanhando do outro, ainda assim seria solidão. Roberto põe suas mãos quentes sobre a cintura de Amália, uma forma de acompanhá-la sem a perder na multidão. Amália não hesita e troca as mãos dele de lugar, as aproxima às suas e as une. As aperta. Imagine o gosto do coração de Roberto. Ela senta numa cadeira que por sorte está vazia, e cobre o semblante com a palma das mãos, o homem se questiona por aquela atitude e cobre o ombro esquerdo de Amália com sua mão direita, uma forma de confortá-la, ela, reagindo, escosta sua cabeça no corpo de Roberto, para aliviar qualquer pensamento que estivesse ali, uma forma incerta de dizer. Roberto senta-se ao seu lado, coloca seu corpo próximo ao dela, a envolve no abraço e aproximam as cabeças, as mãos, de forma a ficarem realmente próximos. Os olhos fechados. Amália abre os seus, abaixa-os pra ver os de Roberto, este ao sentir-se observados por aqueles olhos ergue a cabeça de forma a vê-la melhor, ver seu rosto por inteiro e no desejo de fazer isso seu nariz "raspou" no dela e o encontro não foi apenas esse, não apenas os olhos, não apenas os narizes, não apenas os braços, as mãos, os corpos. As bocas, com ciúmes, uniram-se. Lá fora fazia frio, mas nenhum podia sentir.

Marcella Casari

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sábado, 4 de julho de 2009

Roberto

Roberto não vê. Roberto não ouve e não sente, aliás, apenas sente. Levanta-se da cadeira macia da mesa do computador e deita-se em sua cama, os lençóis foram trocados, a roupa de cama é limpa e clara. Ele se deita pra parar um pouco, continua com o tique de mexer as pernas quando está nervoso e puxa o lençol amarelo e desbotado pra cobrir todo seu corpo, está frio e com preguiça de fechar a janela. Mas não vem de dentro o frio e se levanta, toma novamente a mesma posição lamentável, endireita-se na cadeira, descalça os pés, cobre o semblante sofrido com a palma das mãos e enxerga tudo branco. Agora Roberto vê, e ouve e não sente. Agora ele lê as palavras de Amália presas na tela do computador, lê e se lamenta, lê e se alegra, lê e confunde, todos os sentimentos passam ao mesmo tempo, num mesmo intervalo, no mesmo coração, e isso dói, e machuca, Roberto é machucado, é cortado e mantido da mesma forma. Amália sai. Roberto fica, fica e depois sai. Ele sofre. Mas só ele sofre?

Marcella Casari

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sexta-feira, 3 de julho de 2009

Amália

Amália senta-se no sofá, roe as unhas da mão direita e dá um suspiro bem forte. Toma com essa mesma mão o copo que está a sua frente e bebe um gole bem grande do suco de laranja que sua mãe preparara. Ela está ali a pouco, e já se levanta, toma um ar gélido que entra pela porta da sala e caminha de volta pro sofá, ela procura, espera, mas não chega. Amália corrompe todos os dias a lei do amor, mas já se acostumou a isso e continua na mesma hipocrisia de estar ali sentada, roendo as unhas, lamentando-se de seu próprio coração. Amália machuca. É apenas uma garota. Levanta-se e vai ao banheiro, enxugar o rosto molhado, as lágrimas que escorreram ali, não quis comentar, pois não são dela. Ela sentiu. Sentiu sim e só esse incômodo a fez sair do sofá pra um outro lugar, um outro lugar que não tivesse calma e ausência de culpa. Ali, no sofá amarelo e desbotado Amália esconde a culpa, na verdade, tenta disfarçar que tem alguma culpa, tenta disfarçar que ainda sente alguma coisa por dentro, ou é só o vento que toca sua pele.
Amália volta, com um pouco do trauma das lágrimas de outro, volta com a cara lavada. Minuto após minuto lamenta, lamenta como se de amor ardesse suas mãos, como se fosse ela mesma quem tem dentro de si uma chama, forte e latejante. Age como tal, como amante, que sonha, que deseja, que marca a si próprio sua solidão, essa fartura de solidão, uma paixão não consumada, que Amália toma pra si, aperta, espreme todo o essencial e subtrai apenas o que lhe causa bem, acha que tem o mesmo, que pode ter. Amália levanta, calça os chinelos, ajeita a roupa, levanta a calça, ajeita o cabelo e sai da sala. Ela sofre. Mas só ela sofre?

Marcella Casari

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