sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Carmem

Ele tinha nas mangas umas atitudes difíceis de se aceitar. Um sorrisinho sarcástico que escondia melancolia e desejo. Tinha dentro dos globos oculares uns feitiços animalescos, que fazia jazer de amor qualquer mulher que lhe penetrasse bem fundo os olhos, algumas delas, pobres coitadas, iludidas e sofridas. Nenhuma lhe arrancara do rosto essa convicção de homem dos sonhos, ele carregava o leve fardo de ser o homem perfeito que arrancava de qualquer mulher a pureza que escondia dentro da roupa, ou no próprio olhar, ele dominava sem direito, e isso incomodava muito. Não era o cabelo despenteado, nem as roupas mal passadas por sua mãe, nem se quer a barba que arrancava daquelas mulheres um suspiro atrás do outro, como se aquela dor fosse o auge do prazer delas, ah, pobres coitadas. Não havia nada naquele homem que não revirasse suas cabeças, não tinha sequer um pedaço de seu corpo que não lhes arrepiasse a alma por inteiro, até seus pés, seus pelos, seus ombros, sua língua.

Carmem se encantara por Armando, estava evidente, e negava. Eram jovens e o que o destino não poderia estar reservando a eles? Mas Carmem tinha medo de se perder, deixar-se levar por aquelas mãos quentes não estava necessariamente em seus planos, tentou, mas não evitou olhar de lado assim que Armando sentou-se ao seu lado na mesa do bar, puxando pra dentro a fumaça do cigarro, não, Carmem precisava vê-lo, ao menos pra desmerecê-lo de todos os adjetivos. Não via nada além de um homem mal vestido, que fedia o cigarro que fumava misturado com perfumes de pelo menos umas vinte mulheres. Ele tinha aquelas sobrancelhas despenteadas, o suor escorrendo por seu rosto, o primeiro botão da camisa desabotoado, as mãos grandes marcadas por veias a vista e nada desconcentrava aquela mulher, Carmem virou o rosto, fez cara de desdém e desejou nunca mais vê-lo. Sua fama, ao contrário do que acontecia com a maioria das mulheres, não a atraia, sentia repulsa só de imaginá-lo mais uma vez. Ao menos foi o que jurou a si mesma.
Ela voltou pra casa pensando na cena anterior. Como tantas mulheres poderiam dar valor a um homem como aquele? Homem? Ele nem se assemelha a um, um animal, isso sim, e perigoso, muito perigoso.

Não tirou da cabeça aquele corpo, o cheiro forte do cigarro de quinta, o colarinho da camisa mal passado, o botão aberto que deixava aparecer ainda um pouco dos pelos do seu peito, o braço estendido pra sustentar o cigarro nas pontas dos dedos, o cabelo bagunçado, comprido, preto, as raras sobrancelhas desajeitadas, o rosto ensopa de suor, a barba por fazer, os olhos, os olhos azuis que tentavam se esconder quando ele piscava e mesmo assim dava pra vê-los, e a maneira como ele estava sentado. Carmem tentou, mas aquele homem a consumia já havia duas semanas e nunca mais voltou àquele bar, só o cheiro e delirava. Era ridículo tudo aquilo, e batia a mão na cabeça pra tentar esquecê-lo, ele é homem de todas, todas, menos meu, ela lamentava entre suspiros.



Armando saiu do bar e foi pra casa de Anita. Tomou-a em seus braços, forçou-a a beijar-lhe a boca e ela negou, deu-lhe um tapa e cuspiu em seu rosto. Alegou estar cansada de toda essa palhaçada, cansou-se de ser um objeto nas mãos dele, ao mesmo tomou vergonha na cara, empurrou-o pra fora de sua casa e nunca mais quis vê-lo. Em sua cama estava Roberto, o seu homem dessa vez. Armando chorou. Derramou lágrimas de tão bêbado, chutou com força a pedra que tinha na sua frente, acertou um cachorro, latiu alto, mandou-o ao inferno. Quis um colo, e aquela era a sua maior vergonha, um bêbado carente que se arrependera. Não me lembro de ter dito, mas, Anita era sua namorada e também dona de seu coração, bom, ao menos era. Até que ele determinou-se a ficar só. Nenhuma mulher tinha mais a chance de roubar-lhe o fôlego.


Carmem pôs a chave de casa na bolsa, e saiu andando por sua rua, como uma desconhecida, olhando para os lados temendo ser observada, como se a perseguissem, pois estava preste a cometer um crime. Um crime do coração. Nunca acreditou muito nessas coisas de amor à primeira vista, e Armando não é lá homem que se deposite muita confiança não, todo aquele ar de superioridade causava ojerizas à Carmem. Mas isso não vencia os suspirar que dava. Decidiu voltar àquele bar. O mesmo bar que estava cheio do jeito de Armando, suas curvas, seu cheiro de gente. Não tinha certeza. Mas se não fosse, dormiria com a dúvida e acordaria perplexa, cheia de desejos que mal poderia suportar, seria pior que caminhar com aquela incerteza.

Viu Armando na sarjeta. Com o cigarro no canto da boca, dando carinho ao cachorro mulambento, que mexia o rabinho de felicidade. Viu no rosto dele, marcas de lágrimas. Como se um homem daqueles pudesse ter lágrimas para derramar. Já não sabia mais se entrava no bar, ou se tomava um gole de coragem para sentar-se ali ao lado do homem, pra que ao menos o cheiro dele pudesse penetrar em suas narinas, fazendo cócegas, que a faria rir. Não era um cheiro bom, muito menos agradável, era o cigarro, com o suor e perfumes femininos, mas era Armando e todo aquele cheiro, e todo aquele gosto (...)


Marcella Casari

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2 comentários:

Unknown disse...

nossa,sem palavras .. nem sei o que dizer,o que eu achei? Amei,é como se o texto tomasse conta da gnt.Muito bom Marcella!
Quero ver continuação ..

l'autre invisible disse...

Nossa, Marcella, muito bom mesmo! Gostei, você escreve muito =D